Hoje produzimos conhecimento sobre arte, construímos escolas de arte e nos organizamos em grupos, dentro das mais diversas comunidades deste país. Todo esse processo significa que existe um conhecimento acumulado, uma série de práticas, conceitos e visões acerca de determinadas produções artísticas que cuidamos em transmitir para os alunos. Ao mesmo tempo, é curioso notar que aquilo que mais interessa na arte é exatamente o que de incerteza, de estranhamento, ela pode nos oferecer. No campo da arte, isso não só é natural como é o motor e é perigosíssimo que não seja encarado desse modo!
Como professor, o tempo todo procuro transmitir ao aluno que a formulação que estou fazendo é uma formulação e não é a formulação. É preciso, portanto, sempre deixar espaço para a outra leitura, aquela leitura que eu não possuo. É preciso esclarecer também que em toda a produção artística, em qualquer objeto produzido pelo homem, há sempre uma certa historicidade contida. É necessário que o aluno saiba dessa genealogia, do campo de referências, quando fala, comenta ou julga alguma coisa nós comentamos, julgamos e falamos em algum lugar teórico. Isso, dito de uma outra maneira, nada mais é do que aqueles dois versos do Fernando Pessoa: "O que em mim sente está pensando" e "Não sou eu quem descrevo, eu sou a tela e oculta mão colore alguém em mim". Essa idéia é absolutamente fundamental para os nossos alunos.
Isto posto, quero relatar uma experiência para chegar à questão do espaço público e sua relação com a arte contemporânea. Na Documenta de Kassel, em 1992, havia uma obra de Anish Kapoor que estava chamando muito a atenção do público. Naquela altura, Kapoor era um artista de 36 anos que, dois anos antes, havia sido o representante oficial da Grã-Bretanha na Bienal de Veneza, e que praticamente estreou na Bienal de São Paulo, em 81, passando a fazer uma carreira fulgurante.
A obra estava na praça em frente ao prédio onde acontecia a Documenta e as pessoas enfrentavam uma fila de uma hora e meia para entrar. O trabalho era um grande cubo branco, de 6x6x6 aproximadamente, que tinha uma porta. Quando estava quase na minha vez, saiu um sujeito lá de dentro bradando a sua indignação: "Uma hora e meia para ficar vendo um tapete redondo no chão!" E eu fiquei pensando: mais um que a arte contemporânea perde... Na verdade, a arte contemporânea convida as pessoas e as rechaça, porque elas pensam que se trata de uma relação amigável, enquanto ela definitivamente não é...
Finalmente, entrei com um grupo de 8 a 10 pessoas naquele espaço tomado por uma penumbra muito intensa. A iluminação era zenital e escorria lateralmente, como se o teto não se encontrasse com a parede, e ficasse um fio de luz nos quatro lados. A luz era insuficiente e, em pleno dia, você retomava aquela sensação curiosa da penumbra, de estar num lugar muito escuro e ficar tateando visualmente o ambiente. O olho não encontra nenhuma escora, não consegue encontrar o limite, então você se dá conta de que o espaço também é uma invenção da luz. O espaço vai variando na medida em que o corpo vai se arremessando para fora de si, vai conhecendo cada vez mais a extensão do espaço e o olho é que abre alas.
Havia uma pessoa lá dentro cuidando para que você se organizasse em círculo, em torno de algo que estava no centro, e que era mais escuro do que a própria escuridão do ambiente: o tal tapete circular. Num primeiro momento, esse tapete não funcionava como tapete. Tudo era muito escuro e aquilo que vinha do chão tinha uma escuridão ainda mais intensa. E uma escuridão dentro da escuridão, como sabemos, funciona quase como algo que pulsa. Lembro sempre do escritor Joseph Konrad, no livro Coração das Trevas, quando ele descreve que "as sombras se moviam dentro da noite". As sombras eram os estivadores negros. É essa a idéia de alguma coisa escura que se movimenta dentro da escuridão.
Voltando ao Kapoor, nós olhávamos para o chão com uma certa cautela porque não sabíamos o que era aquilo, até que chegava um momento em que reconhecíamos o espaço e nos localizávamos. Então o que estava no chão ficava como que pulsando, como uma anêmona. Em seguida, à medida que seu olho ia se acostumando, aquilo se acomodava como se fosse um tapete. O Kapoor usa pigmento em pó, que confere uma qualidade, uma textura aveludada diferente de uma superfície espelhada, reflexiva, em que o olho desliza. Com isso, ele ratificava a idéia de que o olho tem tato. Num segundo momento, quando aquele tapete começava a se acomodar, a se transformar em tapete, você se acomodava e se debruçava sobre o trabalho, e era quase que sugado para dentro dele. Então vinha o último detalhe: não era um tapete, era um buraco dentro do chão.
Saí dali e aquele trabalho ficou me incomodando. Mas é para isso que serve a arte, é para incomodar mesmo. Esse é o papel da arte, ela nos coloca frente a determinadas coisas que já conhecemos mas que, por seu intermédio, revemos e reconhecemos.
Nós, que somos da área de artes, muitas vezes ficamos apreensivos com nossa insegurança diante de certos trabalhos artísticos, de nossa profunda ignorância diante deles. O pior é que, como somos identificados como aqueles que sabem, sempre corremos o risco de alguém nos perguntar: "O que isso quer dizer?" Não pergunte isso para mim, porque eu não sei rigorosamente o que responder na hora. Ainda mais quando se está num evento como a Documenta de Kassel, ou a Bienal de São Paulo, que são verdadeiros hipermercados de problemas. Você tem 700 problemas colocados em cada esquina, cada um deles é uma equação de quatro incógnitas.
A estatuária, até Rodin pelo menos, trabalha com a noção de que a escultura, antes de ser um corpo tridimensional, é alguma coisa que faz referência a algo fora dela. Ela é uma mensagem, uma evocação, uma lembrança mitificada, engrandecida. Nós vemos que grande parte da produção moderna e contemporânea foi exatamente a arte chamando a si sua importância enquanto tal, enquanto corpo, materialidade, cor, gesto, vontade de formalização e discurso, e não tanto como uma metáfora, algo que fale de outra coisa. Portanto, o assunto é muito mais importante do que a forma com que está sendo tratado. Nós sabemos que Brancusi foi o primeiro a se digladiar com esse problema, até que chegamos num possível outro extremo com Kapoor. Porque ele faz uma escultura que é só a base. Aquilo que temos na praça é só um pedestal. Isso serve para pensarmos a posição da arte dentro da sociedade, dentro da cidade contemporânea. Você tem um pedestal e ele está vazio, já não simboliza nada, não significa nada. No caso de Kapoor, a arte não é alguma coisa ostensivamente visível, com a qual você tem uma relação de exterioridade. Ele nos coloca dentro da obra. E como se não bastasse, existe um buraco que está dentro do chão e cujo movimento é negativo. Você não tem como saber até onde aquilo vai. A propósito, o nome da escultura é "Descendo para o limbo"...
A arte, portanto, não é algo que se oferece mas é uma potência. E uma sensação que não se conclui nos sentidos. Só os sentidos não dão conta. Eu fui ter a dimensão do buraco da obra de Kapoor quando comprei o catálogo da exposição, que mostrava um corte do trabalho, uma perspectiva axionométrica pela qual você ficava sabendo que o tal buraco era uma esfera perfeita, cavada no chão. Era como se fosse a tampa de uma laranja que foi cortada e você estava ali em cima, vendo o buraco de dentro. O interessante é que o desenho do objeto é o projeto do objeto. Quem garante que o artista tenha se dado ao trabalho de fazer uma esfera? Mas isso é totalmente irrelevante. O trabalho acontecia num segundo plano, num segundo momento e por um outro meio.
Um outro trabalho artístico que eu gostaria de comentar é do Auggie Wren, personagem criado por Paul Auster e interpretado por Harvey Keitel no filme Cortina de Fumaça. Um detalhe no filme me interessou em particular, por essa relação da arte com o cotidiano da cidade. O Auggie é gerente de uma tabacaria que fica numa esquina do Brooklyn, em Nova York, e que tem entre seu público consumidor um escritor, interpretado por William Hurt. O escritor fica amigo do Auggie, se aproxima dele, até que um dia eles estão na casa do Auggie e ele resolve mostrar o trabalho fotográfico que realiza. É muito interessante essa passagem porque o trabalho consiste no seguinte: todo o dia, às 8 horas da manhã, há muitos anos, ele coloca a câmera fotográfica exatamente no mesmo lugar, na mesma posição, e bate uma foto. 0 William Hurt fica olhando o livro de fotografias, diz que está achando interessante, e vai virando, virando, virando as páginas. Então o Auggie diz: "Mais devagar, você não está olhando". E o escritor responde: "Mas é tudo igual". E o fotógrafo insiste: "Não. Não é tudo igual, olhe com atenção." Só então o escritor observa as nuances, à medida que vai desacelerando o olho e começando a perceber luzes diferentes, nas diferentes épocas do ano. Ele vai vendo as pessoas, até que vê a própria mulher que foi assassinada. Aquilo é surpreendente e ele não se controla e começa a chorar. Esse momento é muito tocante, muito forte essa surpresa de que aquilo que interessa é o detalhe, desde que você esteja atento.
Faço uma relação disso com os trabalhos dos Situacionistas, aquele grupo de artistas que gostavam de visitar cidades que não conheciam, em grupos, armados de máquinas e gravadores e tudo mais que pudessem usar para captar o que é a cidade. Eles encaravam a própria cidade como alguma coisa disforme, espetacular, onde as coisas acontecem a cada minuto, a cada segundo.
O problema é que, quando estamos na cidade, nós temos objetivos. Vamos de um ponto ao outro e não percebemos o que há no meio do caminho. Essa é a diferença da arte com relação ao resto, assim como da dança para a caminhada. Você caminha com o objetivo de chegar a determinado ponto, enquanto que, na dança, é o corpo por ele só, com tudo o que pode oferecer. É uma certa ociosidade. É você redescobrir o próprio corpo. Gosto de citar o Millôr Fernandes quando ele diz que "o jogo de xadrez é fundamental para desenvolver a nossa capacidade de jogar xadrez". É esse livre pensar. É esse saber desinteressado. É essa capacidade de se abstrair, de você focar a atenção numa coisa que se resolve ali mesmo. Não tem aquela razão pragmática de quem contempla o mundo com a intenção de buscar algo que está além dele.
Num texto clássico de Ítalo Calvino, As cidades invisíveis, Kublai Khan, o imperador mongól que tinha um império tão vasto que ele próprio não conhecia, nomeava os embaixadores para atuarem como seus olhos. Eles estavam em diversas cidades que compunham o império e voltavam para a corte para contar ao Kublai como eram aquelas cidades. Marco Pólo era o embaixador preferido porque suas cidades eram as melhores. Mas que cidades? As cidades que ele visitava, ou que ele inventava no seu discurso? Porque tudo aquilo era invenção. Então cada cidade era realmente espantosa. Em determinado momento, Kublai Khan vira-se para Marco Pólo e fala que ele está blefando. Esse é, talvez, um dos melhores momentos do livro, em que ele diz que Marco Pólo não pode conhecer tantas cidades assim. Ele acha que Marco Pólo nem sai da cidade e, de tempos em tempos, encontra com o Kublai e fala dessas cidades que, na verdade, seriam uma mesma cidade, vista por ângulos diferentes. A única cidade que o Marco Pólo efetivamente conhecia. A hipótese, ou acusação do Kublai, é muito possível, porque, afinal, quantas cidades cabem dentro de uma cidade?
Isso me lembra aquela poesia do Jorge Luis Borges em que ele diz que Buenos Aires é "a cidade que eu não conheço, que você não conhece; são as ruas que nós não atravessamos, são os outros caminhos possíveis." Então são mesmo muitas as cidades que cabem dentro de uma mesma e única cidade. Essa é a hipótese do Kublai Khan, e a resposta do Marco Pólo é igualmente extraordinária: "Mas você há de convir, ó poderoso Kublai, que uma coisa é a cidade e outra é o discurso que a descreve, mas entre ambas existe uma relação". Quer dizer, o discurso que a descreve não se confunde com o objeto, tem relação com o objeto, mas não é objeto. Nós vivemos nos esquecendo disso. A rigor, um texto como esse do Ítalo Calvino só pode ser pensado dentro dos marcos da modernidade. É na modernidade que você tem, mais do que nunca, a consciência de que aquilo que se está fazendo é uma aventura de linguagem. Então é essa força que a palavra tem, ou que uma boa tela pode ter, ou que uma boa escultura pode ter. É disso que nós estamos falando, dessa capacidade que o homem tem de apresentar coisas, de colocá-las para os outros homens e para si próprio. E de se extasiar diante disso.
Eu estou lecionando na Universidade, em São Carlos, por exemplo, e toda a informação que eu tenho é de segunda mão. Tudo o que eu tenho é informação impressa, no melhor dos casos. E, no entanto, os europeus se acostumaram a dizer, exatamente para afirmar a nossa impotência, que nós só poderíamos criar diante dos museus, diante da obra ao vivo. Então como é que nós fazemos, se nossos museus são capengas, se nossa produção não tem tanta importância? Tanta importância com relação a que? O que se está discutindo em produção artística? É diante desses problemas que nós nos movemos.
O que estou querendo dizer é que nós esquecemos, por exemplo, que por volta dos anos 10 Marcel Duchamp faz uma crítica de uma iconoclastia total. O que ele mostra, e que o Joseph Beuys tempos depois mostra também, é que todos nós somos artistas, que a arte não está na capacidade de construir um objeto com certo virtuosismo, mas sim na capacidade de recuperar o mundo pela importância que você dá a ele. Se nós ficarmos achando que não somos capazes de fazer arte porque não temos um Klee na nossa cidade, nós estaremos perdidos.
Eu quero chamar a atenção que existem outros modos de referência, outras formas de se pensar a arte, de perceber essa infinita e variada matéria que há no detalhe, como nos mostra o cineasta que fez o filme do Auggie Wren.
Uma das piores falsas questões que se colocou neste país diz respeito ao que é regional, nacional ou internacional. Toda a grande arte é regional, em última análise, porque de onde é que o artista vai falar, se não do seu próprio lugar? E o seu lugar pode ser Itirapina, desde que ele olhe para lá, porque Itirapina está no mundo. Também é preciso entender que aquilo que é inventado na Europa, ou na Índia, não pertence à Índia ou à Europa, pertence ao mundo, porque o nosso mundo é o universo, em primeiro lugar.
O que importa é despertar o aluno para essa riqueza que o mundo tem e para a riqueza que pode ter a relação dele com o mundo. Nesse sentido, a cidade é o maior exercício que nós temos. Na cidade há uma proliferação de matérias. É uma memória ao mesmo tempo individual e coletiva porque os espaços falam de nós.
Quero encerrar com uma passagem de Guimarães Rosa, da qual eu gosto muito. Miguilin é uma novela inteira muito sonora, auditiva. Ao final, Miguilin está na estrada quando vêm dois homens a cavalo na verdade um só, que pergunta algumas coisas. E pergunta também porque o Miguilin está com o olho tão apertado: "Você não está bem da vista?" Miguilin não sabe. Daí o sujeito tira os óculos e coloca no Miguilin, e então ele começa a ver tudo: as cores, o telha da terra, o arame dos insetos, os vidros claros da manhã. Ao mesmo tempo, este homem que dá a visão a ele, esse homem que tudo pode, vai levá-lo a uma outra cidade. E ele pergunta: "Mãe, é o mar?" E daí ele fala uma coisa sensacional: "Mãe, porque que acontece tudo?"
A arte é, talvez, a última possibilidade deste mundo tão opaco. E está rigorosamente nas mãos de quem trabalha com educação fazer com que as pessoas que estão se formando percebam a infinidade de coisas que compõem o mundo. Entendê-lo como sendo um elenco de imagens gloriosas que a nossa expressão produziu é pouco. O mundo é mais do que isso. Se não tivermos um arremedo, uma cópia xerográfica em preto e branco já é suficiente. Se tivermos o quadro, melhor, perfeito, maravilhoso, mas um xerox já serve. Temos que conjugar esse esforço com uma visita àquilo que é próximo, deixando aflorar elementos como a evocação, a imaginação, a nostalgia, a memória. Assim, quando você pedir para o aluno que ele olhe para o mundo, para que escolha um fragmento daquilo que interessa da sua cidade e eleja, ele vai eleger alguma coisa. Ele vai se escolher. Ele vai se reencontrar no mundo.
Retirado de um artigo de Agnaldo Farias
-Natália Novaes